Saturday, October 08, 2005

A crônica de dia nenhum

Dois pontos. Começa aqui uma crônica sem pretensão. Alguma coisa que o próprio autor desconhece como deveria começar e como, de fato, merece acabar.

Meio como o dia. Que começa com um abafado sinal sonoro saído de algum despertador. Ou do celular. Um ruído que começa tomar forma assim que o corpo retorna do sono profundo e volta a escutar. Ou quando os dedos se agilizam pra sentir com mais intensidade cada tecla e acabam formando um monte de letras assim todas juntas uma idéia bem nova.

O que se sabe quando começa o dia e o que sei quando começo essa crônica é que o final é sabido. Isso, nos dois sentidos. Sabemos quanto tempo dura um dia e eu sei que esta crônica não vai passar desta folha. E sabido também porque sempre um final sabe das coisas. Sabe do dia vivido e sabe das linhas escritas. Cada pausa do dia para retomar o fôlego. Cada pausa do texto para retomar a inspiração. Convencionaram chamar de inspiração a vontade sempre presente de não desistir, de voltar a cada vírgula e recomeçar. Mas recomeçar com estilo. Querendo dizer algo. Com o vigor de uma frase nova.

Ou com a vitalidade de um novo parágrafo. Que começa como começa o dia depois do almoço. De barriga cheia de comida saudável ou com meia folha cheia de palavras insípidas.

Cada hora que passa ou cada tecla que afunda pra logo retomar sua forma original é preencher um branco nunca antes ocupado. O imprevisível do dia é temido para muitos dos que esperam seus doentes, é festejado por outros que esperam o apito final para comemorar ou é ignorado por outros tantos que repetem a cada inspiração a mesma coisa. O impresso na página é tão inesperado quanto o da tarde que acabou de passar na frase anterior. Esse branco ali em cima que se foi nunca antes fora substituído da forma como este autor escolheu. Uma vez ocupado na vida, esse branco não tem volta. Uma vez ocupado na folha, esse branco não te

A surpresa de cada dia. De cada crônica. O repentino quando se acha que está tudo sobre controle. Nenhum dia é igual ao que se foi. Um dia não é igual a nada. Nem é parecido com coisa alguma. Nem com uma crônica. Nem. Aqui você pode, sim, apagar e começ

Apagar e começar tudo de novo em outro lugar e terminar assim, sem dar nenhum esplicação disso que passou. Nem do erro de concordância, nem do erro de ortografia. Tão pouco da falta de rima rica ou de problema de acentuação.

O problema está na pecinha

Instalou-se esses dias mais uma polêmica no futebol. No gaúcho, dessa vez. Levantaram a hipótese de proibir a venda de bebida alcoólica nos estádios de futebol. Isso porque ele, o álcool, seria o agente de descontrole de muitos torcedores. Causador de brigas, vandalismo e pancadaria.

Também a legalidade da arma está em discussão. Duas fortes frentes parlamentares disputam hoje a opinião da sociedade brasileira para aprovar ou não o 35º artigo da Lei do Desarmamento. Com a aprovação – a vitória do sim, o número 2 – fica proibida a venda de armas e munição no país. Quem tem arma em casa, fica com ela. Mas logo, logo não poderá mais repor os projéteis vencidos que guarda na gaveta. Ou sei lá aonde. Os que defendem o sim dizem que as mortes por brigas e desentendimentos diminuirão em grande número. Crimes passionais e em reação em assaltos também serão reduzidos. Nem de pizza se fala mais. A arma de fogo é a principal personagem desse país que nos enche de orgulho a cada horário comercial ou propaganda política.

Este texto aqui é um protesto em defesa do álcool e da arma de fogo. Um protesto em nome da sensatez.

Vamos olhar bem de perto pro nosso povo. Pros nossos miseráveis, pros nossos analfabetos, pros nossos famintos. A questão é tomar vergonha na cara e admitir que temos um país único. Chega de comparações ridículas com a realidade de países desenvolvidos da América no Norte ou da Europa. Lá, sim, proíbam as armas. Tirem todas das ruas e nada mudará. O índice de homicídios continuará o mesmo. Perto do zero.

O problema do Brasil, definitivamente, não são as armas. E o problema nas brigas em estádio não é o álcool. A grande revelação vem agora. Atenção. São as pessoas. Óóóóóó.

O problema está na pecinha. Lembram da brincadeira? Sempre quando alguma coisa no computador não dava certo, brincávamos dizendo que o problema era na pecinha instalada na frente do monitor, sentada na cadeira.

Sobe o morro, mano. Dão dois pau por mês pra traficá. Os playboy do asfalto são tudo cliente bão. Rua, eu já disse. Você está despedido. Sei lá o que você vai fazer com os seus filhos. Eu já disse, rua. Meu filho não vai pra aula, não, moço. Precisa trabalhar pra ajudar em casa. A coisa não tá fácil. O pai deles perdeu o emprego outro dia e gasta tudo em cachaça.

O problema está na pecinha. A obviedade agora. Dois pontos. A arma sozinha não mata ninguém. O álcool sozinho não atropela e não passa o sinal fechado. Estão pondo a culpa no cara errado, estou avisando.

E adianta? Quando teremos um país de políticos menos corruptos e mais preocupados com investimento em educação? Quando entenderemos que enfiar a criançada toda na escola não é o mesmo que qualificar o ensino?

Pensem nas pessoas. As pessoas fazem um país. Só as pessoas podem alimentar nossa esperança num Brasil melhor. As leis de nada adiantam se não temos pessoas para cumpri-las. Proíbam o álcool e os bagunceiros farão a concentração em casa e irão para o jogo preparados para a fuzarca. Proíbam as armas e aumentará a entrada de fuzis AR-15 pela porosa fronteira brasileira.

Minha vontade é não votar em nada dia 23 de outubro. Por não acreditar nessa farsa. Desvirtuam o problema e sempre jogam a solução pra debaixo do tapete.

Ô paisinho!

O Juca está em crise

Juca se admirou. Viu o e-mail que retornara inesperadamente e sorriu.

Há duas semanas, Juca tinha sido apresentado pra Márcia. Uma vizinha da prima de uma colega de faculdade sua. Não que o Juca tivesse visto a Márcia. Mas ouviu tanto falar dela que parecia que já a conhecia há duas semanas, pelo menos.

A Márcia era uma pessoa bem bacana, contava a Melina. A Melina é a colega de faculdade do Juca que sonha em aproximar o Juca da Márcia. A Márcia trabalha, estuda, é bem legal e, melhor Juca, a Márcia é tri bonita. Gosta de sair, de dançar, dizia a Melina. Ah, Juca, ela tem tudo a ver contigo. Era o que mais ela dizia.

O e-mail da tal da Márcia. Era tudo o que o Juca precisava. Mas como? A Melina não queria dar. Dizia, calma Juca. Ela tem o teu e-mail. Ela é que tem que te mandar alguma coisa. Assim eu combinei com ela. Calma.

No outro dia de amanhã, estava lá. Desenho do envelope fechado, assunto em negrito: o e-mail da Márcia. O Juca enfim acreditou. A Márcia existe e tem o meu e-mail. Ligou o som, ajeitou-se na cadeira e com dois cliques estava cara a cara com a guria.

Oi. Eu sou a Márcia, dizia o e-mail. Tudo bem Juca? O Juca fez que sim. A Melina fala muito de ti, mas eu preciso te conhecer para comprovar. O Juca juntou as mãos e as pôs entre as pernas. Nervoso. Bom final de semana, Juca. Um beijo, Márcia.

O Juca ficou meia hora na frente do e-mail em branco para responder. Disse sim, vamos combinar alguma coisa gata. Não, gata não. Guria. Pior. Vamos combinar alguma coisa Márcia. Um abraço. Não. Um beijo.

E saiu contar pra Melina. A Melina disse que ótimo, disse tudo Juca. Ela vai te responder logo. Talvez demore um pouco por causa da internet dela. Disse que tá um caos. Cai toda hora.

Era desculpa, pensou certo o Juca. A Márcia já tinha falado com a Melina que não gostou do meu sim, vamos combinar alguma coisa. Pouco decidido. Devia ter escolhido logo um lugar. Bosta.

O resto da semana o Juca não comentou mais nada com a Melina. Falou de outras gurias. Queria despistar. Não te apega Juca, dizia pra ele mesmo. Não te apega. A Melina também não dizia nada. O que reforçava ainda mais a tese do Juca. Tinha se queimado no primeiro e-mail. Nem tinha sido no primeiro encontro. Imagina se tivesse rolado. Que fiasco. Nem foi. Foi no primeiro e-mail.

Sábado de manhã, o Juca conectou rápido. Só pra baixar os e-mails. Um da biblioteca, outro de besteiras, um da Melina e um da Márcia. Da Márcia?

Juca se admirou. Viu o e-mail que retornara inesperadamente e sorriu.

Desculpa Juca, minha internet tá uma bosta. Nossa, a Márcia é tri, ela fala bosta. Cai toda hora, não consigo nem mandar os e-mails. Claro que sim, vamos combinar o lugar. Como passou a semana? Um beijo, Márcia.

Foi boa a minha semana Márcia. Foi tanta correria na faculdade quem nem ia conseguir te responder mesmo. Nem esquenta não ter mandando, isso acontece. Podemos nos ver na praça Dom Feliciano, amanhã, às 14h? Um beijo, Juca.

Viu? Eu te disse. Vai dar certo Juca, dizia a Melina. Vocês vão ficar junto. Ela já respondeu? Não, disse o Juca. E faz três dias já. Calma, guri. Ela não disse que a internet tava uma droga? Uma bosta ela falou. Isso, bosta. Então, espera.

O Juca esperou. Não tocou mais no assunto durante duas semanas. A Melina perguntou uma vez só. Na corrida. Nem ouviu a resposta do Juca.

Um mês e nada. Dois. Três.

Estamos em crise. O quê, Juca? Eu e a Márcia. Como assim? Estamos em crise. Li na internet que isso é bastante comum nos relacionamentos virtuais. Quando um dos dois teclantes não responde depois de um mês, chamam isso de crise. Como aquelas de antigamente, sabe? Ái, Juca, sério?

Sério. Estamos em crise. Crise do terceiro e-mail.

Jornalismo boca suja e debochado

“Na história de Veja, foram muitas as reportagens que alcançaram repercussão
internacional. Entre elas, estão as que detonaram a crise política ora em curso.
Na semana passada, a revista voltou a ser destaque na imprensa internacional.
(...) A reportagem sobre a máfia do apito, da editora Thaís Oyama e do repórter
André Rizek, ganhou o mundo por meio da internet, da televisão e das páginas de
publicações importantes da América do Sul, Ásia, Europa e dos Estados Unidos.”
Grande coisa.

É só o que se fala nas aulas de jornalismo ultimamente quando tocamos no assunto. A Veja deu um baita furo e é a capa que mais vende nas bancas há bastante tempo. Grande coisa. Faz um péssimo jornalismo. Talvez o pior da história de vida de muitos colegas meus. Quase todos nascidos na década de 80, eu sei. Não é muito tempo. Mas tem a sua relevância, sim.

Como todos, estou indignado com a crise política. E como a Veja e outros tantos, sou partidário do não na votação da proibição das armas e munição.

Poderia ser um prato cheio, então. Mas isso não me fez ficar feliz com o que a Veja faz. Para a Academia, é um retrocesso esse tipo de jornalismo. Não são matérias de revista. Não são textos que deveriam traçar um panorama da semana, revelando fatos, apontando suspeitos e deixando a conclusão para o leitor. Isso não acontece. Decididamente.

“Entre tantas perguntas ao vento levantadas pelo estouro da quadrilha de
petistas que assaltava o Estado, é reconfortante saber que pelo menos para uma
delas existe resposta: por que a crise política não detona a economia e o Brasil
parece funcionar até melhor enquanto os políticos estão preocupados apenas em
manter a cabeça sobre o pescoço?” Página 58 de Veja, de 14 de setembro.

“(...) o deslumbramento de alguns de seus (do PT) principais
representantes, que, diante do banquete do poder, lançaram-se sobre os pratos
como porcos magros.” Página 69 de Veja, de 14 de setembro.

São exemplos da abordagem da crise política publicadas pela Veja. Sem aspas. É um texto da matéria da revista. Isso mesmo. Quadrilha de petistas e porcos magros. Quase tudo se confirma na conversa de bar, quando se joga papo fora. Sei que sim. Mas não é coisa que se diga. Não assim. Isso é jornalismo boca suja.

“A pergunta que será feita no referendo das armas é um disparate. Ela ilude o
leitor. É uma trapaça, pois, mesmo que o sim vença por larga margem, (...)”
Página 77 de Veja, de 5 de outubro.

“O povo não pode ser exposto ao
ridículo.” Página 78 de Veja, também de 5 de outubro.

“O desastre é que
o referendo do dia 23 não será um passo na direção dessa utopia. Se vencer o
sim, ele apenas vai desequilibrar ainda mais o balanço de forças entre as
pessoas comuns e os bandidos – a favor dos bandidos.” Página 80 de Veja, também
de 5 de outubro.

“(O referendo) é mais uma oportunidade perdida.” Página
80 de Veja, também de 5 de outubro.
A Veja se declarou logo de cara. Coisa que pode até ser considerada como uma atitude honesta da revista. Ela é contra a proibição de armas e munição. Mas ela é debochada também. O texto é muito mais que um texto com posição. É um texto que ironiza a questão e rebaixa o nível da discussão para os fundos da cozinha. Com gente assim não dá pra conversar, diriam uns.

Cada vez mais o leitor brasileiro precisa de informação. Isenta, objetiva e imparcial. No mínimo, tentativas de realizar isso devem existir. Mas a Veja não quer o desafio. Prefere logo mostrar a cara. E virar um grande e respeitado caderno de opinião jornalística.