Friday, February 18, 2005

Onde é que nós estamos?

Comecei a descobrir o mundo nas aulas de História e Geografia do primeiro grau do colégio Espírito Santo, longe poucas quadras de casa. Ali ele começou a tomar forma, ficou mais redondo, mais azul, mais político. Aprendi a calcular o fuso horário enquanto descobria curioso a localização de cada país. Depois, cada um desses países era dividido por continente, se estudava a sua população, moeda, língua e se decorava a capital. Isso de todos. Lembro da salada que era na prova quando tinha que lembrar das duplinhas, país-capital, país-capital. Às vezes invertiam. Capital-país, país-capital. Das guerras, sabíamos pouco. Tudo se resumia em causas e conseqüências. Assim também eram com os movimentos sociais. A Revolução Industrial, a Francesa. Da professora de História, lembro até hoje. Era uma senhora que parecia não envelhecer nunca. Tinha dado aula pra minha irmã e continuava sempre igual, conservada, enérgica, falante e com seios fartos. Claro que eu e os colegas valorizávamos os outros talentos dela, mas aqueles outros dois, habitarão para sempre na nossa memória.

Outra que lembro com carinho é da professora de Geografia. Esta não era enérgica. Ao contrário. Era a mais parceira de todas. Provas fáceis. Opa. Falei. Além de nos apresentar o mapa-múndi, foi no primeiro dia de aula com ela que fiz os primeiros questinamentos a mim mesmo sobre o uso de tatuagens. Isso, tatuagens. Beeeeeeem mais que hoje, àquela época tatuagem era coisa de gente, digamos, diferente. Ela tinha um borboleta colorida no pescoço. Não que eu seja um velho, mas isso pra época e prum colégio de freiras, vamos combinar que ganhava um certo destaque. Bom, depois de ter chegado ao mundo, foi mais ou menos assim que o mundo chegou até mim. O resto dos detalhes a gente deixa prum outro momento ou pra minha biografia autorizada, hehe.

Causas e conseqüências. País-capital, capital-país. Vegetação de todas as espécies e relevos de todos tipos e dimensões. Foi assim que o mundo me foi apresentado. E acreditava que, sim, o mundo era mesmo este. Eu saberia mais do mundo em que vivia na medida em que lesse mais o livro e estudasse mais pra prova de Geografia ou de História. Isso era o mundo. Dois livros e quatro períodos de aula por semana.

Questiono se não merecíamos mais. Questiono que mundo era este que líamos na coleção de volumes da editora Ática (se não me engano). Questiono se o mundo que leio hoje, alguns bons anos depois daqueles, no jornal que recebo todos os dias, ensacadinho, encostado na porta da garagem, é o mundo que existe pra valer.

Questiono se o mundo de verdade tem um Estados Unidos assim tão grande, tão expressivo. Questiono se uma pseudo-guerra no Iraquel é assim tão importante quanto dizem ser. Questiono se esses números de mortes são, na real, tão dignos de frieza... afinal seres humanos estão morrendo e eu leio, leio e as linhas não me convencem. Uma televisão venezuelana que transmita 24 horas de programação latino-americana vai me contar mais desse mundo?

Percebem a minha angústia? Devemos mesmo acreditar na televisão, no jornal e na agência de notícias da mesmo forma que, inocentes, acreditávamos nos livros do primeiro grau? Que mundo lemos ou assistimos todos os dias?

Na semana passada, as atenções todas foram voltadas para a Coréia do Norte que anunciou ao mundo (que mundo?) que vai mesmo participar da brincadeira "Eu tenho, você não tem!", à convite do seu Bush. Este, então, nem se fala, como se diz. É o piá dono da bola, que não deixa ninguém jogar com a sua e fica morrendo de inveja se alguém compra um brinquedo novo e atrai toda a atenção. E nós somos os leitores fiéis desta brincadeira que eles chamam de mundo.

A imprensa é a nossa interface com o planeta. Num país de pouquíssimos leitores de livros, a menos que tenhamos uma outra fonte alternativa de informação, somos abastecidos de conhecimento pela mídia. A menos que você leia. Se não, o jornal lhe contará todos os dias o que está acontecendo lá fora. Dirá, inclusive, com o que deves te preocupar, o que deves descartar e com o que deves te sensibilizar. A globalização fez a mídia mais perto de nós. Mas menos sincera. Fez o mundo bem menor. E talvez por isso, incompleto.

A Uzina produz para se abastecer de questionamentos. Que mundo é este que você assite, que você lê, que você ouve? Como se safar de uma mídia que funciona como uma agência de turismo para o nosso conhecimento? Hem?

Sobre o que assistiremos no futuro

Certamente, na minha humilde opinião, a idéia da criação da Tele Sur foi o que houve de mais concreto — e, exageremos, persuasivo — que a cultura não-hegemônica da metade sul do continente americano poderia ter apresentado na quinta edição do Fórum Social Mundial. Centralizada em Caracas, na Venezuela, a nova emissora que pretende dar voz a rica diversidade dos povos latinos, terá transmissão via satélite, 24 horas de programação e linha editorial desenvolvidos em parcerias com canais alternativos, comunitários e afins de toda a América Latina. "Através de uma equipe comprometida, o canal do sul busca converter-se num modelo capaz de competir com a produção estadunidense e européia, pondo-se ao serviço das hoje ignoradas iniciativas latino-americanas de produção audiovisuais independentes". Esta é, portanto, uma das missões e objetivos do canal que quer dar voz de equilíbrio ao massificado discurso do norte. "Hoje, a imagem midiática que é difundida na América Latina não dá conta da diversidade e da riqueza do imaginário latino-americano. Não contribui para o conhecimento de nós mesmos, da evolução de nossas realidades, nem da valorização de nossas culturas milenares e suas projeções no presente e no futuro."

Pode até ser que não seja essa maravilha. Eu sei. Muitos criticam a possibilidade do Fórum ter uma de suas próximas edições sediadas pela Venezuela. Dizem que este seria um grande plano de Chávez para se consolidar no poder e disseminar ainda mais sua política revolucionária pela América e pelo mundo. A Tele Sur pode ser uma ferramenta para isso também. Por essas e por outras que virão, que me explico. A Tele Sur pode não ser a solução para o adestramento televisivo ao qual estamos submetidos há décadas e décadas. Certamente não o é. Mas é o início, é a essência de uma estrutura que sempre defendi como premissa para a possibilidade da existência de um outro mundo. Mais justo, mais real, menos material. Não tenho gosto, não, pela revolução armada. Nem pelos pontos de exclamação. Não venho desta geração. Minha geração cresceu sonhando com a diplomacia e a paz entre os povos. Indignada e confusa com a matança diária que assola o Oriente Médio. Defendendo o diálogo e a resposta inteligente.

Em entrevista a revista Carta Capital, edição de 9 de fevereiro deste ano, Steve Solot, atual vice-presidente da Motion Picture Association (MPA), conversou com a repórter Ana Paula Sousa sobre a ação da cultura hollywoodiana sobre a produção audiovisual brasileira. A MPA congrega os sete grandes estúdios americanos — como Fox, Warner, Columbia e Universal — e está montando um escritório em São Paulo, onde centralizará sua atuação na América Latina. A associação terá, ainda, representação em Cingapura, na Ásia, e em Bruxelas, na Europa. No Brasil, ao invés da associação destinar 11% da remessa de lucros que enviaria aos Estados Unidos à Receita, o governo permite que a MPA invista em produção nacional 70% do que pagaria em impostos. Ou seja, mais uma vez a cultura americana banca o vôo da imaginação tupiniquim, enquanto pinta com suas cores a ilusão de termos um cinema independente e com sua própria cara. Parece bairrismo da minha parte pensar assim. Talvez pense você que o isolamento também não levaria a nada. Não. Brigo contra a hegemonia e estou me tornando repetitivo. A França tem um dos melhores cinemas do mundo. Talvez porque barre intervenções deste tipo em sua cultura. Há pouco, decidiram que o filme Un Long Dimanche de Fiançalles não teria financiamento do governo por ter sido co-produzido pela Warner. Não, não é bairrismo. É proteção contra um sistema que, haja visto, não deu, não dá certo. "Mas a França, historicamente, tem sido um país que resiste ao processo de globalização cultural em benefício próprio", comenta o entrevistado. Sejamos assim, então. Contra a globalização e a favor de um outro meio de espalhar o avanço e a modernidade, que não seja às custas da vida, da alma, da natureza e do bolso dos outros.

A criação da Tele Sur e a mostra das pretensões da MPA no Brasil, são, sim, contrapontos interessantes. Cheiram bem e estão no ponto para uma saudável discussão sobre o futuro da humanidade. Eis algo saboroso que o Fórum nos deixou. A idéia de confrontar os dois hemisférios.

A Uzina produz mais energia a cada provocação deste tipo. Largue o controle remoto e responda, que você acha a respeito?

Irracionamento

Lembro quando um professor meu contou que tinha despertado para essas campanhas de racionalização da água. Lembro que foi na Unisinos, mas não lembro quem era o cara. Contou que estava chegando em casa um dia, na tardinha, depois do serviço ou sei lá, e viu uma velhinha com a mangueira numa mão e pazinha noutra lavando a calçada na frente de casa. Flagrou a velhinha no exato momento em que ela empurrava com um jato de água uma folha de um lado ao outro da calçada, até fazê-la despencar, molhada, no paralelepipido da rua.

Contou-nos que a cena da velhinha foi algo que o emocionou profundamente. Depois do acontecido, tornara-se um militante devoto e anônimo do movimento de racionalização da água. Esse testemunho todo já era, na certa, uma forma de persuadir-nos.

Tem coisas que a gente até já sabe, mas precisa alguém pra dizer, não? Confesso que me sensibilizou a história da velhinha. Sério. Que grande privilégio tinha aquela calçada ou até aquela folhinha ao receber um banho de água potável? Hem? Brrrr. Água esta que recebeu o investimento de trocentos reais nossos e outras tantas horas de tratamento para ficar em condições de consumo para o ser humano. E não para lavar as calçadas.

Esses dias deu na TV um senhor que quase foi teve seu abastecimento cortado porque insistia em regar o jardim em uma das cidades da região metropolitana de Porto Alegre que estava em período de racionamento, a pedido das autoridades locais.

Faltam fiscais também, não? Há muito tempo que tenho a impressão que sobram fiscais de trânsito — os famosos azuizinhos — nas ruas da minha cidade. Basta uma noite de um pouco mais de movimento pra vermos um dos veículos da frota com dois ou três deles à espera de uma infração. Ao invés de estarem ali, aos montes, aguardando que um imprudente passe o sinal fechado ou apareça com os faróis apagados, muitos exemplares deles poderiam estar nas ruas conferindo os abusos no uso da água. Lavando o carro em tempos de seca no Estado? Coisa pro azulzinho, oras bolas. Seria mais uma desculpa para a arrecadação? Talvez. Mas enquanto se discute, muitos litros d'água deixariam de escapar pelas torneiras do vizinho.

Ao contrário da energia elétrica, a água é um bem que não repomos, portanto acabável. Não racionar é pôr em risco o banho de nossos netos, dos filhos deles. É pôr em risco a alimentação. A espécie. Assim como não usar o cinto e beber antes de dirigir, não racionar é mais um belo exemplo da nossa irracionalidade.

40 dias para a tolerância

Já falamos sobre intolerância aqui na Uzina. Foi na ocasião do Fórum Social Mundial. Falávamos a respeito do painel do Nobel em literatura José Saramago. Na seção aberta às perguntas do público, um jovem estudante levantou-se e indagou os painelistas sobre a intolerância que havia entre as muitas ideologias, credos e interesses dos participantes do Fórum. Concordei com ele. Não é possível outro mundo se não nos entendemos em nosso pequeno mundinho de relações.

Batíamos nessa tecla na época do CLJ. Sim, participei do Curso de Liderança Juvenil, como muitos. O próprio hino do movimento dizia que era preciso que o mundo fosse um pouco melhor porque nele nós vivemos. Pra mim, essa parte da letra sempre disse que eu precisava investir no meu mundinho, nas pessoas que eu conheço, com as quais me relaciono. Esse mundinho é passível de mudança. Esse outro mundinho, sim, é possível.

Esse pra mim, é o século da tolerância. Não sei bem porquê. Nem me perguntem porquê do "século". Só acho que a tolerância é a chave para todo e qualquer investida em favor da paz. De cima pra baixo. Se o Bush não tolera a diferença cultural dos islâmicos e a auto-suficiência deles em petróleo, como estamos vendo, a paz se complica. Se um Presidente da República não tolera as diferenças partidárias do seu antecessor e não dá continuidade a projetos que não são de sua autoria, mas que dão certo, o país regride. Se você não tolera a provocação no trânsito e parte para a briga, pode ter um triste fim se o outro cara tiver uma arma. Se eu não tolero a vontade imensa da minha namorada em fazer algo com a qual não simpatizo, nos estranhamos.

A tolerância deve vir em favor da vida. Os pequenos gestos de tolerância transformam o mundo, trazem a paz. E isso, sei, não é novo. Jesus Cristo pregava a tolerância, o perdão. Pediu para que não fizéssemos aos outros o que não gostaríamos que outros fizessem a nós. Perdoe setenta vezes sete vezes. Ao baterem numa face, ofereça a outra. Opa. Sinônimo de covardia, de submissão? Pense. Eu questiono.

Como dizem os mais vividos, o que fazemos de bom é só o que levamos dessa vida. Um bom começo é praticar a tolerância.

A Quaresma — período que marca o primeiro dos quarenta dias antes da Páscoa — trouxe mais uma edição da Campanha da Fraternidade. Desta vez ecumênica, ou seja, com a participação de todas as igrejas cristãs, e não somente a católica, a iniciativa pretende discutir o tema Soliedariedade e Paz.

“Que a nossa força não seja a violência, mas o amor.
Que a nossa riqueza não seja o dinheiro, mas a partilha.
Que o nosso caminho não seja a ambição, mas a justiça.
Que a nossa vitória não seja a vingança, mas o perdão.”