Saturday, February 05, 2005

Respostas de outro mundo

O ano de 2001 trouxe para Porto Alegre a primeira edição do Fórum Social Mundial. Era o início de uma caminhada organizada pela esquerda política de todo o mundo para discutir questões centrais para a construção de um outro mundo. Nos outros três anos que se seguiram, o Fórum voltou a acontecer em Porto Alegre. Com a participação do público aumentando a cada edição, chegou-se ao número de 100 mil participantes em 2003. No ano passado, o encontro ocorreu na cidade de Mumbai, na Índia e envolveu cerca de 100 mil pessoas outra vez. Este ano, o recorde foi estabelecido. Segundo informações de autoridades locais, o Fórum chegou a ter 200 mil pessoas circulando ao longo dos armazéns do Cais do Porto, Usina do Gasômetro e parques Farroupilha e Marinha do Brasil, locais onde o evento aconteceu. Em 2006, a idéia é que o Fórum seja descentralizado, tendo suas discussões ocorrendo em diversos países, simultaneamente. No outro ano, em 2007, a África vai receber o encontro. Marrocos passa a ser a bola da vez. O país seria a porta de entrada para o Fórum atingir os países do Oriente Médio.

Tornou-se polêmica ano passado a declaração do presidente Lula dizendo que o Fórum tratava-se de uma “feira ideológica” e que pouco chegava a soluções práticas. Aceita por muitos e rebatida por outros tantos, o certo é que a questão avançou, foi discutida entre os milhares de participantes do Fórum, entre os painéis e hoje é pauta da Uzina. Em sua opinião, como um outro mundo é possível?

Um grande mural construído no local do Fórum, expôs 352 sugestões para tornar possível um outro mundo. As idéias foram recolhidas durante os dias do evento e o mural tornou-se o grande símbolo dos anseios dos diversos povos que passaram por ali.

A Uzina foi até lá e quis ouvir a resposta de pessoas de diferentes partes do mundo. Muitos são os credos, as raças, as línguas que compõem a diversidade do Fórum Social Mundial. Muitos são percebidos logo de cara, pelo olhar curioso que examina o mapa na mão, pelo excessivo cheiro de bloqueador solar e pela estranheza com que percebem as coisas ao redor. Os anseios fazem todos, porém, habitantes da mesma aldeia. O sentimento é de revolta, de urgência e de esperança.

Em sua opinião, como um outro mundo é possível?


Ghassan F. Abdullah, pesquisador universitário de Ramallah, Palestina
Os atuais governantes do mundo, especialmente os neoliberais americanos, e a sociedade neoliberal espalhada pelo mundo todo, estão fazendo a vida mais difícil pra maioria das pessoas do mundo. Este Fórum é uma forma de confrontar esse ataque contra os interesses de qualidade de vida e saúde das pessoas. Mas nós esperamos mudar essa situação que traz guerra e devastação. E, claro, há problemas políticos com a ocupação do território palestino, do Iraque, do Afeganistão.

Diogo Cavalcanti, estudante universitário de São Paulo
Um dos exemplos é este Fórum. Um centro de discussões democráticas, participações de jovens, comunicação. Um outro mundo é possível quando se volta a atenção para os pobres, para os países do terceiro mundo. Um outro mundo é possível sem desigualdade social, sem imperialismo, sem dominação dos americanos, da Europa, de quem quer que seja. Um outro mundo é possível com igualdade política. Principalmente com democracia, cara. O diálogo, a conversa... acho que é importante isso. Porque, qual que é a idéia do Fórum? Na minha opinião é essa. É reunir a diversidade num mesmo tom, que é discutir os problemas da sociedade.

Luz María Helguero de Plaza, diretora do jornal El Tiempo, do Peru
Eu acredito e acho que todos os que estão aqui pensam assim também, que há aqui muita inquietude. E penso que esta edição do Fórum deu um salto qualitativo. Que depois deste Fórum já se possa estabelecer talvez uma filosofia, uma ideologia, um partido político... Concordo com Saramago quando ela fala conosco sobre as Nações Unidas... para que as Nações Unidas recupere essa voz plural, que é o que todos queremos. Acho que é um pouco por aí que um outro mundo é possível. Mudar as estruturas. E o Fórum nos mostra um grande movimento nesse sentido. Nós que estamos aqui entendemos que se pode mudar, que se pode se ter um mundo mais plural, mais diverso, com muito maior inclusão. Que não seja uma coisa hegemônica, que não somente a voz de um pretenda representar a de todos.

Monika, universitária nova-iorquina
Eu venho dos EUA, que é um país que se considera o melhor do mundo e especialmente em termos de democracia. Mas é um país que não prioriza áreas que eu considero importante como educação, saúde, arte e cultura. Eles se preocupam mais com militarismo, capitalismo e consumismo. E com uma espécie de falso sentimento de felicidade. Então, no meu ponto de vista, um outro mundo seria possível priorizando as coisas que eu já mencionei. Eu não tenho certeza se pra isso nós precisamos de governo, mas no momento nós temos um governo e eu espero que ele comece a corresponder às necessidades que eu acho que todas as pessoas no mundo têm.

Joice Elisa Costa, cientista política. Vive em Pelotas, Rio Grande do Sul.
Acho que um outro mundo é possível nessa perspectiva que estamos vivendo aqui no Fórum. Ele é possível no momento que a gente se propõe a trabalhar duro, a se matar para construir esse mundo. Porque ele não vai acontecer do nada e as edições do Fórum estão bem pontuadas nesse sentido... a primeira edição foi mais rebelde, tipo pra dizer “nós existimos, estamos aqui e somos contra um pensamento único”. Depois a coisa foi se estruturando e eu acho que este Fórum está bem mais maduro. Eu acabei de participar de um painel que propõe a montagem de um Observatório Brasileiro de Mídia. Isso é importante. Esse tipo de coisa, que nasce com o Fórum, é fundamental. Já tinha nascido o Media Watch Global em outra edição. Isso demonstra um amadurecimento mesmo. É claro que temos muito mais pra caminhar, mas estamos no caminho certo. Também vejo que a organização deste Fórum se propôs a rebater as críticas de que do Fórum não nasciam soluções práticas. E eles tiveram um grande acerto no momento em que eles decidiram socializar e democratizar o próprio controle do Fórum. Dizer “vem aqui, vamos conversar, vamos organizar”. Este foi um grande acerto. Eu até acho que as primeiras edições acertaram em centralizar mais a organização. A gente vai errando e vai acertando... virão ainda muitas outras questões, mas repito que estamos no caminho certo...

Elias Elliot, escritor. Vive em Capinas, São Paulo.
Eu acredito que um outro mundo passa inevitavelmente pela leitura. Os livros são nossos sábios, novos conselheiros. Mas infelizmente nós não temos uma cultura que desenvolva o hábito pela leitura, o bom gosto. Acredito piamente que a leitura é um dos principais caminhos para se construir um mundo bom. Nós sabemos que existem ainda muitas outras questões que podem nos levar à construção de um mundo bom. Mas acredito que elas estão mais no mundo da utopia do que da realidade. Enquanto que a leitura pode ser tornar, sim, realidade.
Esta edição do Fórum eu acredito que esteja mais vazia, digamos assim, de intelectuais. Me parece que esvaziou. Eu estou vendo menos pessoas reconhecidas, pessoas públicas, mais notórias. Estou percebendo que aumentou o número de pessoas no evento, mas esvaziou o lado das pessoas mais pensadoras, mas decisivas. E eu vejo este Fórum como uma grande arena para as decisões futuras da humanidade. Seria uma pena se acabasse porque ele é uma grande referência para se tomar decisões futuras no planeta.

Hugo Verjadez, membro da Liga Socialista Revolucionária, da Argentina
Bom, o que estamos vivendo é bastante complicado, não? É uma etapa de muita guerra e muitas crises. Mas isso não quer dizer que não poderá haver mudança radical e revolucionária na sociedade. Nem mesmo pelo que está acontecendo no Iraque, na Palestina, no Haiti o mundo não se dá conta de que cada vez mais vivemos pior... Um outro mundo é possível, sim. Mas temos que lutar muito e de forma revolucionária. Para nós, o capitalismo quer destruí-lo. Não é possível reformá-lo. Porque sua lei será sempre de mais guerras e mais conquistas. Os maiores problemas são o imperialismo e o capitalismo. E é isso que queremos dialogar com os povos latino-americanos, do mundo todo, com as pessoas que estão aqui. Acreditamos, sim, que um outro mundo é possível. Mas há que se lutar muito.

Um jovem nova-iorquino, estudante de Política Americana nos Estados Unidos
O FSM é um bom exemplo de como um outro mundo é possível por que você vê pessoas vindas de diferentes países, falando diferentes línguas, não necessariamente se comunicando, mas entendendo umas as outras, criando um fantástico encontro internacional com tantas atividades diferentes, como cultura, música, muito sobre política. Eu não vejo o Fórum como um evento pra se falar sobre como um outro mundo é possível, mas é um exemplo disso. Como o respeito por diversidade sexual e racial. O Fórum é um exemplo dessa possível mudança.
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Um outro mundo se dá a partir das diversidades. Pra isso, é preciso que as diversidades apareçam, se manifestem. Nesse sentido, a mídia tem um papel fundamental que é o de abrir espaço para que essas diversidades tomem corpo, tomem forma. A gente sabe que a mídia tradicional tem já os seus interesses delimitados e não se tem muito espaço nesses veículos. Então, é necessária uma articulação da cidadania para que crie esses espaços. E isso vem ocorrendo no Brasil nos últimos tempos, com a criação das rádios comunitárias, TVs comunitárias, os sites, os blogs. Então essa é uma conquista importante, porque a diferentes opiniões se manifestam aí, as idéias são colocadas e as pessoas podem, então, fazer sua opção para que esse novo mundo comece a ganhar corpo. No nosso caso, especificamente de uma TV pública, esse compromisso deve ser a base de toda a programação. O compromisso com a pluralidade das informações, das opiniões. O compromisso com a verdade, no sentido de não tentar passar uma opinião já formada. Por ser um canal do Estado brasileiro ele tem esse compromisso: de ser um canal por onde as informações trafeguem com um grau de oficialismo, de responsabilidade. Essa preocupação toda existe também porque somos fonte de informação para outros veículos. Nós temos convênios com outras televisões públicas de todas as partes do mundo que retransmitem a nossa programação. Então, nós começamos com esse sentido aqui no fórum. Conseguimos colocar no ar opiniões de diferentes países, procuramos sempre estabelecer debates e entrevistas com a diversidade... acho que vamos conseguir.

Friday, February 04, 2005

Papo com o além

Sentaram os dois lado a lado, no escuro. Olharam ambos para o lado oposto, afim de que ficassem frente a frente. Assim, poderiam ouvir claramente o que sussurravam, trêmulos. Mateus podia ouvir até mesmo a respiração de Germano. Estavam perto o suficiente.

Nada de importante. Coisas do dia a dia. Mateus tinha perdido a avó antes de ontem. Morreu de infarto. Falaram sobre a morte.

- E, então, acredita na vida depois da morte?
- Sim.
- É espírita?
- Não.
- Então?
- Só acredito. Que mania de querer associar tudo à uma religião... Tu acredita?
- Não sei.
- Devia acreditar.
- Por quê?
- Porque é básico. Todo mundo já ouviu ou viu alguém que já morreu.
- Não fala merda. Eu nunca vi nada.
- Não viu porque não acredita.
- Pois é.
- Vai viajar?
- Sim, pra casa da guria. Vou no sábado e volto na terça.
- De bus?
- Não, com o carro do pai.
- Cuida, né meu.
- O quê?
- Ah, os acidentes. Morre gente todo dia com isso.
- Eu sei. Mas muito é papo da TV. Eu sei até onde eu posso ir.
- Te liga, vai na manha.
- Na manha eu não chego. Na última vez fui em uma hora e quinze. Essa vez não passo de uma hora. O finde já é curto, capaz que eu vou perder tempo na estrada...
- No máximo, tu vai economizar 15 minutos. Não viaja, vai acabar te incomodando de graça. Teu pai arrumou o cinto?
- Bah, nem me lembrava. A Cátia não usa e eu acabei me acostumando. Lembramos sempre quando já chegamos. Hehe.
- E elas, cadê que não voltam?
- Ali. Tão vindo.
- Doce?
- Salgada, amor, gosta?
- Pode ser.
- Que merda de frio esse ar, porra.

Esperavam as namoradas virem com as pipocas. O ar-condicionado esfriava o ambiente enquanto falavam sobre a morte. O que vem depois dela e também sobre ela. Mas, claro, não sabiam. Germano só soube dela quando ela chegou. Assim como lembrava do cinto de segurança. Mateus não imaginou que o escuro do cinema e o frio eram parte do ritual. Ele falava com o amigo que estaria morto horas depois, na Freeway, auto-estrada que liga Porto Alegre com o litoral norte do Estado. Germano e Amanda também não imaginavam. Nunca pensaram que podia acontecer, assim, tão perto, e com eles. Sei lá, tão jovens. Sabe lá se imaginariam que podia ser tão terrível. Levaram junto os pais de Amanda e outra família de Gravataí. Pai, mãe, filho e primo. Iam conhecer a casa que o pai, Luis, havia alugado em dezembro, pros 10 dias de férias. Teriam alertado Germano se soubessem. Assim como tentou fazer Mateus aquele dia, antes do filme. Agora Mateus chora e Germano dá adeus a esta vida numa coluna de uns poucos caracteres do jornal de quarta-feira. Acabou pra eles.

Quem se importa? Falamos com a morte a todo instante. Acreditando ou não na vida após ela. Falamos com a morte sempre. Principalmente antes dos feriados prolongados. O ritmo de festa faz a vida parecer indestrutível. A velocidade sacia os sentidos do motorista que, anestesiado, esquece da recomendação de quem o ama. E vira nada. Um corpo no meio de ferragens. Mais um número no jornal. Que, vocês sabem, sendo pouco, o pessoal nem lê. Só lê quando é tragédia mesmo. Com um monte de morto. Quatro, cinco é comum. Acontece todo dia. Amanhã ou depois.

Parece brincadeira ou cópia. Sempre, quando voltamos a trabalhar ou a estudar, depois do feriado ou do final de semana, tem mais uma leva de gente que se foi. Por imprudência de um ou de outro. Mas se foram. Muitos, nessa hora, estão falando com a morte e esquecendo de recomendar bons modos. A única coisa certa dessa vida é a morte mesmo.

Não é assim? Depende também de nós, sim. Alerte quem você ama e quem você sabe que desafia a prudência. Diz que o ama, se for preciso. Assim, você evita descobrir que, ao invés de uma conversa qualquer, aquele já pode ser um papo seu com o além.

Monday, January 31, 2005

A cor da diversidade Posted by Hello

Intolerância

Saramago fez que concordou.

O Auditório Araújo Viana, em Porto Alegre, amanheceu lotado na manhã de sábado, 29 de janeiro, para o painel Quixote hoje: Utopia e Política. As palestras tinham terminado e há pouco tinha iniciada a sessão de perguntas, abertas ao público, quando o rapaz levantou. Jovem estudante, de fala firme, indagou Saramago. Não lembro exatamente das palavras. Começou falando da fila para perguntas. Disse que tinha sido empurrado por uma outra pessoa que também ia perguntar.

- Como podem as pessoas se empurrarem aqui? Não estão todos engajados, na luta por um outro mundo? Porque não é possível um outro mundo se lutamos cada um pelo seu ideal. Isso aqui é uma briga partidária, uma disputa de ideologias ou estamos todos juntos buscando um mesmo ideal humanitário?

O rapaz fez ainda algumas outras perguntas. Mas o seu primeiro desabafo ecoou e cobriu de reflexão os que o escutaram. Eu estava em casa e larguei um pomposo "baaaah". Saramago fez que concordou quando começou a responder outras questões para o rapaz.

Parece absurdo para alguns que eu não comece falando do comentário ou da resposta do português, Nobel de literatura em 1998. Muito mais importante, foi o simbolismo daquele desabafo. É exatamente disso que o Fórum Social Mundial está precisando e tomara que encontre nas próximas edições. Uma crítica que surge no meio dos participantes. Assim mesmo, de dentro pra fora. Uma respiração saudável para a sobrevivência. Era visível no estudante o sentimento de indignação. A fila foi o grande palco por onde transitaram os personagens simbólicos do conflito de interesses que há neste evento.

Não é possível, diria o rapaz e fazia que concordava Saramago, que o movimento indígena queira o seu mundo ideal, o MST o seu, o movimento feminista o seu, a Une o seu. Nenhum outro mundo é possível assim. É preciso que haja uniformidade do discurso para que floresçam soluções práticas para iniciar a viabilização deste outro mundo. É preciso haver tolerância com a necessidade do outro também.

No jornal Correio do Povo, aqui de Porto Alegre, o psiquiatra Jorge Ignácio Szewkies já alertava, no dia anterior, para o sério problema.
"(...) Haverá, neste Fórum, encontros entre pacifistas israelenses e palestinos. Temo que afluência de público seja menor que nas oficinas francamente belicosas, que têm resposta pra tudo: eu estou certo e o outro é o meu inimigo. Gritarão palavras de ordem e sairão todos contentes com a escolha de um inimigo responsável por tudo. Cantarão, dançarão e voltarão para suas casas. Tudo seguirá igual. Assim outro mundo não será possível."

Naquela manhã, José Saramago fez que concordou. Antes mesmo do painel já havia feito menção aos jornalistas do problema da falta de ações concretas do FSM.
“As baterias têm que funcionar para pôr o motor a funcionar. Esta é a minha idéia. Teria de inventar no FSM algo que não fosse uma ONG, que se dilui na quantidade quase astronômica de ONGs, mas que se apresentasse como um fórum de debates de idéias não simplesmente que as pessoas se encontram e vão ter idéias e ficam contentes com isso. Que vão aprender algo e comunicar algo. Mas que seja mais do que isso. Que seja um instrumento para a ação”.

O outro mundo precisa de ação. Não de utopias. Precisa de respeito e de tolerância com o outro. Não de gritos e palavras de ordem.

Olhemos, sim, para o nosso queridinho umbigo. Mas não para encontrar o que está certo, mas para reconhecer o nosso próprio papel nisso tudo.

O farto e o faminto

Quando há o faminto e o farto, precisa haver esforço de ambos para que a transformação aconteça. O faminto precisa dizer que tem fome e muito mais. Precisa mostrar legitimidade do seu esforço por uma condição melhor de vida. Precisa querer que a fome do outro também seja saciada. O farto precisa revelar seu caráter humanitário, abrir mão da vaidade e estender a mão.

A relação que se estabelece entre o FSM e Davos é esta entre o faminto e o farto. Ambos possuem sérias responsabilidades e ambos ignoram que as possuem.

Impressões do Fórum Social

De que forma um outro mundo pode ser possível? Confesso que é quase irresistível lançar essa pergunta como pauta de uma próxima visita ao Fórum Social Mundial, que começou dia 26, em Porto Alegre, e terminou na segunda-feira, dia 31.

Descemos na estação Mercado e caminhamos ao longo das instalações do Fórum, que põem a Usina do Gazômetro no centro disso tudo. O visual cosmopolita passa a chamar a atenção depois que nos desvencilhamos dos carros e das sinaleiras que abafam a percepção de qualquer um sobre qualquer coisa. Jornalistas e participantes de todas as partes do mundo se encontram, formam seus grupos e cada olhar e cada movimento deflagram os que não são daqui.

Seguimos nosso caminho. Passamos pela grande feira instalada logo após a Usina, pelo acampamento da juventude e pelo anfiteatro Pôr do Sol. A impressão foi ruim. As instalações da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica), local onde aconteceu a última edição, davam uma postura mais sisuda ao Fórum. Tinha mais cara de coisa séria, comprometida. O atual modelo, ao ar livre, combina mais com feira, com brique, com palavras ao vento e idéias que vão tão longe e se perdem tanto quanto o horizonte do Guaíba. Levanta-se, também nessa edição, a suspeita de que nada de concreto se extraia dali. Fica como destaque a multiculturalidade e o grande bem que o Fórum traz à cidade.

Do segundo poderíamos falar bastante. A começar pela grande presença da Brigada Militar. Que, convenhamos, nada tem a ver com a grande insegurança que a cada dia sentimos aumentar em nossa família, em nossos filhos, em nossos vizinhos. Qualquer um podia agora começar um grande desabafo aqui, mas deixa pra lá.

Parece que um grande contingente foi deslocado do litoral para garantir a segurança do evento que se despede este ano da capital dos gaúchos. Despede-se levando a falsa impressão de uma cidade segura.

Afora a segurança, servem como destaque o crescimento das vendas de quem depende do comércio de água mineral, de cachorro-quente ou de milho-verde para sustentar a família. Vê-se muito deles por lá. E todos ocupados atendendo ou tentando decifrar a necessidade de um estrangeiro interessado. A superpopulação que lota os hotéis da capital também é, senão o maior, um grande aspecto a ser ressaltado.

Bom, disse acima que a multiculturalidade é o outro grande destaque do Fórum. Pois então. Estávamos na estação Mercado, de volta pra casa, no fim de um dia de muita caminhada. Às margens da plataforma, aguardando conosco a chegada no próximo trem, estavam cerca de sete ou oito cidadãos de Sri Lanka.

Tinham a pele negra, mas não muito. As mulheres vestiam roupas pesadas e compridas. Tinham aquele sinal pequeno e arredondado entre os olhos, característica também das mulheres da Índia, creio eu. Os homens usavam trajes bem comuns. É interessante acompanhar a forma como se comunicam, como são dependentes uns dos outros num país tão estranho. Deviam ser de alguma ONG ligada ao plantio. Foi o que deu pra ler no crachá que usavam no peito. Demos risada quando o primeiro trem passou e não parou. Não estava na linha dele. Devia estar se deslocando pra outra estação, ou sei lá. Mas os nossos visitantes não entenderam nada. Entreolharam-se. Estavam em dúvida se havia faltado alguma iniciativa deles para que o trem tivesse parado. Bem engraçado.

Estávamos entretidos com um senhor de São Leopoldo que também vinha do Fórum quando resolvermos arriscar alguma conversa em inglês com algum dos cingaleses. Tentei o primeiro que logo fez sinal dizendo que não entendia bulhufas do que eu falava. Do outro lado, um colega seu cutucou meu braço e disse que, sim, "I speak english".

Legal. Pude fazer uso do que sei de inglês pra descobrir que estavam indo se hospedar em algum hotel em Esteio, que eram mesmo de Sri Lanka e que estavam achando o Brasil "very, very good". Talvez o papo rendesse mais se não tivesse chegado a nossa hora de descer. Despedi-me com um ligeiro "good night" e recebi um sorriso do senhor.

De volta pra casa ficou a vontade de saber mais daquele senhor. Como estava a sua gente depois do Tsunami, da situação de suas casas, suas famílias. Do que faziam no Fórum. Esperam realmente levar algo daqui? De que forma um outro mundo pode ser possível?