Sunday, April 17, 2005

Oh, Olga.

Foi a minha primeira vez. Na verdade sempre esperei por isso como um guri com boa imaginação. Não pensei que fosse acontecer assim, naquele lugar e naquelas circunstâncias. Ela me pegou de jeito e a partir dali nossa relação não podia, nunca mais, ser a mesma.

Olga, de Fernando Morais, deve ser uma das grandes obras da literatura nacional. Para a minha literatura nacional, pelo menos, ela é incomparável.

Foi numa noite dessas. Estava voltando da universidade de micro-ônibus, e resolvi retomar a leitura de Olga. O marcador de páginas era longo, mas menor que a página, tanto em largura quanto em comprimento. Tinha a inscrição da livraria Cultura em um dos lados. Imagino que tenha sido lá, na Cultura, que a amiga que me emprestou o livro o tenha comprado. No verso do marcador, havia um menino. Estava vestido com uma camiseta de manga longa amarela e tinha uma bolsa vermelha cheia de livros em uma das mãos. Na outra, segurava um livro aberto. Com olhar concentrado, lia, de pé, o seu livro. A ponta do meu marcador revelava as enésimas vezes nas quais ele havia sido puxado ou encaixado numa das tantas páginas.

O micro-ônibus deu mais um de seus saltos. Outro dia pensei que estava sentado na poltrona que fica em cima do pneu. Deveria ser por isso o desconforto. Não era. O troço era ruim de negócio mesmo. A cada pulo que ele me obrigava dar, eu apoiava uma das mãos no banco da frente e a outra não era capaz de impedir que o livro se fechasse.

Mas aquele dia o livro fechou por outra razão. Como dizia, não pensei que aquilo fosse me acontecer assim. Sabem, ler em micro-ônibus e em trem não é nenhuma tarefa fácil. A adversidade causada pelo sono e pelo cansaço de quem atravessa a região metropolitana da universidade para casa, às vésperas do dia seguinte, toma providencias para que a leitura não tenha, digamos, a fruição adequada do leitor. A iluminação também não ajudava. Direcionei os pequenos olhos de luz que saiam do teto para o meio do livro e a cada pouco me ajeitava pra não perder o foco da luz e ter que forçar a vista. Uma penumbra danada.

Esse era, à primeira vista, meu universo. Eu, um marca-páginas judiado e um livro cheio de letras as quais tomavam forma na medida em que o foco dos minúsculos refletores do alto as iluminava.

– Agora quero ver se você fala ou não fala, comunista filho da puta. Nós vamos
assar você por dentro.

O comunista filho da puta era o alemão Arthur Ernst Ewert, vindo de Xangai, na China, após rápida passagem por Moscou, para lutar ao lado de Luiz Carlos Prestes e Olga Benario na revolução comunista no Brasil. A voz era de um policial alemão, acompanhado de um brasileiro, sob o comando da polícia carioca, em pleno governo Vargas.

Falou e enfiou um palmo de arame dentro da uretra de Ewert. O preso resistia,
mas aí o policial brasileiro apareceu com um pequeno maçarico para solda, com o
bico em chamas. O alemão segurou com delicadeza o pênis de Ewert, como um médico
o faria, e passou a esquentar com o maçarico o pedaço de arame que ficara para
fora. Da garganta de Ewert o único som que os policiais ouviram foi um mugido,
como de um boi. Em seguida, seu corpo desabou, pendurado na grade pelas mãos. O
policial brasileiro parecia feliz em ver alguém tão resistente e riu admirado ao
comentar com o nazista:

– É, doutor... Parece que desses teus
patrícios aí nós não vamos arrancar nada mesmo.

Foi nessa hora. Como ou mais que você, fiquei aterrorizado com a cena que minha imaginação materializava na minha mente. Fitei os olhos no nada e, devagar, fechei o livro. Movimentei a cabeça ao redor. Para a auto-estrada e para os carros que passavam nas duas janelas, uma em cada lado do micro-ônibus. Para as silhuetas das pessoas que viajavam comigo. Na real, não olhava diretamente pra nada. O olhar era profundo. Olhava pra mim também. A narração de Fernando Morais ainda fazia eco.

Aos saltos do micro-ônibus, retomei a consciência. O livro estava fechado no meu peito, quando resolvi continuar. Havia ainda meia hora até em casa e umas duzentas páginas pela frente.

1 Comments:

At 8:37 PM, Blogger Juliano Filipe Rigatti said...

Saio às 22h30 e chego em casa às 23h25. Mais, sim.

Algo mais, Medeiros?

PS.: Só não te empresto pq, como viste, é de uma amiga...

 

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