Alface
A memória é bem visual daquilo que fazíamos. Alguém puxava-me pelo braço. Apertávamo-nos todos. Um gritava que não dava, não tinha posto perfume. Outros riam disso. Quando o silêncio enfim era conseguido (mesmo sem saber a razão de desejá-lo), outro pedia se podia ir ao banheiro. Assim, do nada. Outros tantos riam. Uns riam muito, inclusive. Diziam que parecia coisa do Chaves. Apertávamo-nos mais um pouco e lembro do Bacon solicitando:
-- Digam alface.
Risada de uns e de outros, abafadas pelo consentimento: todos diziam alface e forçavam o sorriso até disparar o flash. E repetir o flash, uma ou duas vezes.
A foto ficava sempre bem bonita, sorridente. Aquilo de dizer alface, como nós fazíamos, fazia o registro daquela cena parecer-se bem com o que realmente as pessoas sentiam. Sim, porque eram todos momentos felizes. Ou CLJ em Viamão, ou festa de 15 anos, ou aniversário de algum. Ou qualquer coisa lá bem legal.
E todos diziam alface por isso. Para não restar dúvida, eu acho. Porque não pode restar dúvida, pode? Todos devem parecer-se felizes. Sempre. Porque sorrir faz bem, faz bem à pele, ao coração, à saúde.
Mesmo que não se queira. Mesmo que não se possa. É preciso sorrir.
Enquanto o mundo corre e jura que agrada alguém. Alguém que sorri quando queria mesmo era chorar ou sorri quando preferia mesmo era gritar. Mas o mundo continua a correr e a financiar nossos minutos, a burocratizar nossas relações e a copiar nossos dias, enquanto sorrimos a todos pra pensarem que está tudo bem. Porque o sorriso esconde o choro, esconde o grito.
Pior de tudo: esconde o sorriso de quem hoje cruzou por você no caminho de casa e só queria sorrir. Assim, de verdade. Mostrando todos os dentes e fazendo brilhar o olhos. Sem precisar iludir a sinceridade ou repetir as sílabas do alface.
E não, não é uma visão pessimista do mundo, nem do meu mundo. Até porque não se pode ter uma impressão verdadeira disso. Ou você sabe exatamente o que se passa lá fora? Ou você sabe exatamente o que se sente aí dentro, aqui dentro?
Há tempos que há ferrugem nos sorrisos e há muito tempo que não se sabe de verdade o que é um sorriso de verdade. Ou não. Sei lá.
***
Ah, uma dica legal: assistam Whisky, dos diretores uruguaios Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Ganhador do Kikito de melhor filme latino no Fetival de Cinema de Gramado/RS, ano passado.
4 Comments:
E eu ainda assim prefiro sorrir a cerrar os dentes. A engolir o sorriso amarelo escrachado, rir àquele que despreza o quanto é simples ser feliz. E mesmo quando choro, eu ainda rio, que a dor é contraposto da verdadeira vontade de sorrir.
E tenho dito: é melhor ser alegre do que ser triste.
Abç.
Luciene, faz bem, muito bem. Lutemos com coragem para ter sempre à face o alface nosso de cada dia.
Legal te ver por aqui.
Abraço.
Medeiros...
...ouvi falar tão mal da Medeiros esses dias. Acho q vou até parar de te chamar assim. Antes que ache que eu te quero mal.
Abração!
quando eu era pequeno, um fotógrafo meio picareta, desses que passavam de casa em casa, propôs fazer um álbum - na época não se falava em book - meu e da minha irmã. nas primeiras fotos, fiz: alface. pensando bem, não foi alface, mas um sinônimo: xisssss. aí o cara disse: não sorri porque teus olhos fecham quando tu ri. pronto. desde então, a seriedade se abateu nas minhas fotos. no máximo um pequeno sorriso, dissimulado. até fica charmoso, mas não é um sorriso de alface, largo, esparramado. fotos em que eu apareço gargalhando valem uma fortuna no mercado negro.
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